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Foto do escritorPsicanalise Descolada

PULSÕES DE AUTOCONSERVAÇÃO

Atualizado: 15 de jun. de 2021

Autoconservação é uma função dita “egoica”. Freud, em suas primeiras elaborações sobre as pulsões, chegou, em 1910, a estabelecer a dualidade pulsional entre as pulsões de autoconservação (pulsões do ego) e as pulsões ditas sexuais. As primeiras seriam funções vitais onde o modelo da fome-alimentação indicaria algo mais elementar e concreto na ligação entre impulso e objeto de realização do impulso (se tenho fome, então quero me alimentar). Já as pulsões sexuais desde sempre tiveram na teoria freudiana o lugar de insurreição das moções e fantasias inconscientes onde se verificam uma gama de objetos variáveis e indeterminados que causam e sustentam o desejo (no caso, a música dos Titãs deram a pista deste campo que é pura libido, ao interrogar em uma música, o seguinte: “Você tem fome de quê?”. (pergunta, aliás, que cabe a um analista para fazer deslizar a demanda do paciente e dar sequência à análise)

Em outras palavras, os objetos das pulsões de autoconservação seriam muito mais previsíveis e observáveis do que os objetos das pulsões sexuais que, além de inexatos, deslocariam-se metonimicamente de forma que “qualquer” objeto pode, potencialmente, despertar o tesão!: meias, bigodes, batons, seios, pés, sapatos, calcinhas, cheiros, e uma infinidade de outros cacos...

A partir da criação, em 1914, do conceito de narcisismo, onde Freud deduz que o próprio ego é também capaz de investir a si próprio como objeto da libido, as dimensões de autoconservação deram lugar a uma crescente ponderação do ego como fonte de libido e, portanto, pouco a pouco, a autoconservação deixou de ser elemento fundamental na teoria freudiana das pulsões para se tornar funções mais coladas ao campo do dito instintual, fisiológico. A autopreservação é tida, no desdobrar da teoria freudiana, mais como mecanismo de defesa primordial do que como pulsão propriamente dita.

Em 1920, Freud propõe nova dualidade pulsional: a oposição estaria, agora, entre as pulsões de vida (pulsões sexuais + pulsões do ego) e a pulsão de morte (segundo Freud, pulsões que não permitiriam a ligação com objetos e cadeias libidinais levando o “organismo” a se satisfazer de maneira insistente em circuitos de compulsão à repetição que, em última instância, visariam o gozo absoluto, pleno, ou, dito ainda de outra forma, o gozo de morte). A destruição da vida encontraria numa ultrafixidez da libido o fato de a libido atar-se ao desejo de forma a consumir-se até o fim, por motivos invariavelmente compulsivos e, portanto, difíceis de serem negociados, tratados. Isto se dá porque a libido, a partir de uma certa pobreza psíquica, mostra-se incapacitada em fazer deslizar-se metonimicamente (o que significaria disponibilidade para trocar de objetos de satisfação) para amarrar-se ao mastro do gozo imediato que, em última instância, é um gozo de morte. Libido ultrafixada é sinal de gozo incidindo no mesmo lugar, viciando o circuito e limitando a vida a um tipo particular de modalidade tóxica de hábito ou vínculo.

Apesar de a teoria freudiana ter avançado de forma a diminuir seu interesse pela autoconservação tendo a concebido como função egoica, muito mais defensiva do que desejante, o fato é que ninguém pode ignorar o seguinte motivo: para seguir vivendo, para se estabelecer em boas condições físicas e psíquicas, o nome “autoconservação” mostra-se uma ideia extremamente importante.

Ninguém vai muito longe se não souber se defender.

Mas, afinal, o que é a autoconservação? Trata-se de um ofício onde o ser humano - seja ele tomado individualmente ou coletivamente - tem de se por em condição permanente de vigília, observação e cuidado para que suas condições de permanência, saúde e bem estar sejam respeitadas, valorizadas, mantidas, cuidadas e libidinizadas. Sem isso, a vida – que já é algo circunstancial, passageiro e mesmo precário – estaria muito mais ameaçada e fadada a perecer aumentado sofrimento e decadência.

Muito se faz sem medir consequências, avaliar riscos e antecipar eventuais contratempos. Com isso, o corpo, como um todo, tende a tornar-se vulnerável. A adoecer.

Parece óbvio imaginar que todos teriam a capacidade de se autopreservar, mas não é. Pareceria evidente pensar que as pessoas, apegadas à vida como valor máximo, fariam de tudo para manter suas existências em condições favoráveis e lutariam por descobrir meios de se manter conservados e protegidos tanto dos perigos e ameaças externas quanto internas. Mas, o fato é que, não raro vê-se que muitos vão perdendo a noção de como se cuidar, como se manter íntegros e preservados uma vez que a vida é ameaçada constantemente por elementos (previsíveis ou não) capazes de perturbá-la ou mesmo extinguí-la.

Pessoas, por diferentes motivos, perdem a capacidade de se cuidar, cegam-se diante de ameaças ou riscos iminentes ou, simplesmente, ignoram o fato de que devem permanecer em resguardo e zelo de suas próprias vidas. Mais ainda: há muitas pessoas que, por determinadas formas a que se condicionaram a ver o mundo e de conceberem suas vidas acabam mesmo optando por se deixar destruir ou vendo na autodestruição uma saída, um modo legítimo de dizer “não”, de protestar, de se vingar, agredir e ameaçar.

Muito do idealismo ou romantismo é capaz de levar pessoas a autocomiseração, autopiedade, autocondenação e autodestruição. Isso acontece, também, quando a neurose é tanta a ponto de fechar o inconsciente (este grande produtor de metáforas!) a ponto de a pessoa ficar rodando atrás do próprio rabo”. Dependentes.

Nestes casos fica fácil perceber que a autoconservação sofre uma inversão e torna-se autoagressão ou autodestruição. É fácil perceber, assim, de como a autopreservação inverte sua rota estando a favor do desejo imperioso de destruição passando a ser movimento inequívoco da pulsão de morte.

Não raro vejo pessoas chegarem para fazer análise comigo estando muito abatidas, machucadas, sofridas e mal tradadas. Basta um pouco de tempo para que a análise revele que, a história de alguém que chega a essa condição é repleta de eventos de ataques sofridos – não raro muita violência - onde a pessoa foi, paulatinamente, sucumbindo ao Outro, perdendo sua capacidade de reação, ataque e evitação de circunstâncias ameaçadoras.

Para que as coisas não descambem em favor do sofrimento psíquico extremo e da decadência, em movimentos de desintegração egóica (leia-se corpora!), é preciso que a pessoa ative suas capacidades desejantes de defesa e crie condições de evitar/expulsar o inimigo que pode ser tanto interno quanto externo.

Autopreservação tem a ver com amor próprio, autoestima, apego à vida e, sobretudo, desejo de viver bem. É preciso saber avaliar circunstâncias e uma boa capacidade afirmativa para impor desejos, impor limites e dizer “não” a si e aos outros quando for o caso. Somente alguém investido de uma potência de afirmar o que quer e o que não quer, saber avaliar o que pode e o que não pode, assim como administrar aquilo que convém e aquilo que não convém é que poderá atingir uma certa concentração de forças internas para melhor superar obstáculos e manter-se íntegro.

Alguém em postura de cuidado de si, de vigília, para que o inimigo/invasor não ganhe espaço, alguém que saiba respeitar padrões de conduta e conservação da saúde de si será sempre alguém mais prevenido e mais defendido contra inimigos e invasões inoportunas que, muitas vezes, podem ser inauditas e invisíveis.

Neste caso, estar em análise, submeter-se ao processo de olhar para si através da re-ver-lação do Inconsciente, pode, de fato, ser um caminho para que se consiga, não sem muito esforço e trabalho, restaurar padrões de ação e organização que impulsionem alguém para frente e não o deixe chafurdando na lama da miséria dos maus-tratos.

Carlos Mario Alvarez


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